capa do Livro "Sumidouro das Almas"
Jorge Fernando dos Santos
Regionalismo
sem afetações
O escritor Ronaldo Cagiano comenta o novo livro de Jorge Fernando
dos Santos, "Sumidouro das Almas"
Ronaldo Cagiano*
Com cerca de 20 livros publicados,
o escritor e jornalista mineiro Jorge Fernando dos Santos
transita por várias linguagens. Da literatura ao teatro,
do cinema à música, sua produção
intelectual revela não só o talento e inspiração
de um criador vocacionado, mas a versatilidade com que maneja
a palavra. Exercendo amplamente a crítica no mundo
cultural e artístico, é editor de Suplementos
e Revistas do jornal "Estado de Minas", onde assina
uma coluna de crônica, já recebeu o cobiçado
Prêmio Guimarães Rosa com o romance "Palmeira
Seca", que foi levado ao teatro e à tevê.
Em sua trajetória, vem colecionando a opinião
de importantes escritores e críticos do País
e do exterior, entre eles Wilson Martins, Fernando Py, Jorge
Amado, Malcolm Silverman (USA), Lygia Fagundes Telles, Abgar
Renault, Carlos Herculano Lopes e Duílio Gomes, que
salientam a fluência e originalidade de seu estilo.
Jorge Fernando acaba de lançar um instigante romance,
que levou oito anos para ser concluído e que reflete,
mais uma vez, a preocupação do autor com a linguagem
e com o universo descrito. Em "Sumidouro das Almas"
(Ed. Ciência Moderna, RJ, 2003, 226 pgs. – R$
26,10), ele aprimora suas qualidades narrativas e alcança
a originalidade ao fundir características das
diversas vertentes que marcaram a literatura contemporânea.
Toda sua experiência criativa encontra seu auge nesse
romance, fruto de um meticuloso trabalho de pesquisa de texto.
Incorpora elementos da literatura tradicional, da oralidade
do cordel, da pulp fiction, dos policiais, dos romances de
cavalaria (como um Quixote combatendo pelos sertões
da vida), além de ingredientes da música e do
teatro. Há ainda uma poesia e um tom melódico
que perpassam os diálogos, contrastando com a gravidade
e rigidez da realidade
enfocada. A presença desse caleidoscópio literário
referenda a importância da linguagem e de certa forma
metaforiza a comunicação moderna, cada dia mais
híbrida e permeável às mutações,
refletindo a necessidade do homem de explorar todas as possibilidades
de comunicação, do coloquialismo à erudição.
Sumidouro das Almas, que dá título ao livro,
é o nome fictício de um arraial do sertão
mineiro (análogo à Macondo de Gabriel García
Márquez, como a Santa Maria de Onetti, ou semelhante
ao Condado de Yoknapatawpha, de Faulkner, cidadelas míticas
em que os escritores costumam projetar o alter ego de suas
cidades natais). Nela ocorre a saga de Faustino, um garimpeiro
atrás de um diamante roubado e obcecado por uma vingança,
e que empreende um encontro de contas com sua própria
existência, mesquinha e enviesada. Menino ainda, ficou
marcado pelo assassinato do pai – imagens difusas percorrem
sua memória, e o leva cedo ao caminho do ódio,
travestindo-se num justiceiro a qualquer custo. É esse
o leitmotiv da obra, que o move a um pacto com o diabo, como
o do cientista Fausto com Mefistófeles, entregando
sua alma para encontrar o assassino.
E assim, vai crescendo com a idéia fixa da vingança,
até que, adulto, lança-se ao mundo na perseguição
do criminoso.
Peregrina pelo Vale do Jequitinhonha, perambula pelo Norte
de Minas, Montes Claros e Teófilo Otoni e nesse périplo
descobre Adriano Raposo, um pistoleiro refratário a
novas investidas (também conhecido como "Nonô
Carvoeiro", para despistar o seu passado), mas que acaba
voltando à vidinha de mercenário para ajudar
o amigo. No caminho, surge Maria Cármen, com jeito
e sedução de cigana, que desperta seu amor,
entre intrigas e disputas, acabando por cair em seus braços,
depois da vingança completa e do sangue que manchou
a aridez daqueles lugares.
Ao longo da história, vão surgindo pistas de
uma literatura que tem influências bastante diversas,
algo que mescla o épico, o dramático, e o lírico,
na expressão dos cortes cinematográficos, no
enfoque de um mundo multifário, ao estilo do velho
oeste ou com a melancolia e solidão dos desertos territoriais
e interiores.
Jorge Fernando ainda tem o mérito, nesta obra, de resgate
histórico e social, ao recolher expressões típicas
de uma região e adotar o ritmo de cordel como recurso
de memória dos personagens no entrecho dos capítulos.
Por outro lado, vale-se de expressões típicas
faladas pelos negros da Tabatinga, um núcleo de resistência
idiomática situado numa vila de Bom Despacho, na dialética
de um personagem que não esquece seu passado.
Sem dúvida, encontramos
em "Sumidouro das Almas" um ficcionista que trata
a linguagem com habilidade de artesão e a preocupação
do esteta. Entre outros aspectos bem explorados, destacam-se
a interpretação dos dramas humanos, a reprodução
de uma saga que expõe a miséria psicológica
e social de uma região, com formatação
de um regionalismo sem plágios ou pastiches, mas sem
perder a densidade e o realismo com escreveram sobre essa
mesma atmosfera Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, José
Lins do Rego e Jorge Amado. Na lavratura de JFS esse ambiente
ganha dimensão e dicção próprias,
pois o autor teve o cuidado em reconstruir com detalhes o
vão território das angústias, a geografia
tórrida e causticante de um caminho sem volta, a psicologia
dos personagens, conferindo à trama um grau de veracidade
e tensão, promovendo um diálogo com vários
estilos e tendências narrativas. É uma obra de
quem tem perfeito domínio da técnica, alcançando
o
equilíbrio entre a forma e o conteúdo e valorizando
o texto pela invenção de novos parâmetros
discursivos, numa interface entre a tradição
e vanguarda.
* Texto publicado no Jornal
Opção, de Goiânia. O autor é escritor
e crítico literário, publicou vários
livros, entre eles a coletânea de contos "Dezembro
Indigesto".
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